domingo

Na tranquilidade sinto-me segura


Nos tempos que correm ser professora é estar todos os dias com assintomáticos e acreditar que todos os cuidados da escola e na escola nos protegem. É muito desgastante e quando o dia de aulas termina estou por um fio, de tanto ter esticado a corda das minhas capacidades de representação no palco que é uma sala de aula. O toque para a entrada é o sinal para a subida do pano, quero prender os alunos à aula, conto-lhes as aventuras de Wegener, realço a sua coragem e camaradagem com os colegas de expedição, apresento-lhes a Teoria da Deriva Continental e deixo-os em suspenso em relação às respostas encontradas nas fragilidades dos seus argumentos. Normalmente é fácil transmitir o meu entusiasmo mas tem sido extremamente difícil comunicar só com a voz e os olhos, ainda que recorra a muitos gestos. Outra nova barreira com que tenho de lidar é o impedimento de circulação na sala de aula. E os rostos deles! Nunca os vi! Vejo os olhares que me dizem muito mas não revelam tudo. Sinto a agitação no balançar das cadeiras, nas mesas que de repente ficaram mais juntas, nos braços esticados no ar, nos atropelamentos das questões. Mas e aqueles que nem que eu fizesse o pino se interessam por ciências, tentando boicotar uma aula escondidos atrás de uma máscara! Esses que não reconhecem o esforço a que os professores são obrigados a fazer, não respeitam os riscos que estamos a correr para que eles e os pais continuem a viver dentro de uma certa normalidade, esses que normalmente são aqueles que não conhecem regras e que os pais só os querem é despejar na escola, como se fosse o contentor dos malcriados indesejados. Embora se contem pelos dedos os alunos assim caíram todos na mesma turma e na aula teórica do final do dia, estico a corda com este esforço final e fico por um fio.

Respiro fundo mal passo o portão da escola, caminho em passos rápidos até à estação de comboio e no meu "canto de leitura" retomo alguma tranquilidade abstraindo-me do que me rodeia, mergulhada nas vidas das personagens que vieram comigo até Lisboa. Para Lisboa vim com a avó da Laura, num tempo distante, vivido numa Bath bombardeada pelos nazis, onde coragem, determinação, solidariedade e amizade são as palavras que melhor vestem à avó de Laura e à sua amiga. No regresso a casa vivo na actualidade com a Laura, uma mulher que se reinventa após as filhas terem saído de casa e mais não revelo, sugerindo a leitura de "Receita de família", uma leitura com a qual retomo a tranquilidade onde me sinto segura.

Ao serão é o ritmo das agulhas que me distrai enquanto vejo séries. Esta semana recomendo "Gambito de Dama", reveladora do poder da amizade, da importânciados laços que criamos na vida (embora esteja classificada com "consumo de álcool e substâncias ilícitas" penso que os mais novos poderão devem ver desde que devidamente acompanhados).

Nas agulhas nasce uma camisola, modelo simples com fio que não é 100% natural, nada do que habitualmente faço, mas o fio Invicta (cor 13) é agradável de trabalhar e embora precise de camisolas simples, básicas e de cores sólidas, a espera da lã norueguesa, e o facto de não ter conseguido adquirir (dificuldades com o paypal) o modelo Shifty Andrea Mowry no Ravelry , teve como resultado esta camisola colorida e 3 meadas de Douro  aguardando um outro destino.

E assim vivo em tempo de pandemia, no sossego do campo, encontrando nos livros e nas minhas agulhas a tranquilidade, a morada onde me sinto segura.

sábado

Gracias a la Vida

A pouco e pouco a vida muda e a reconquista de uma felicidade plena, vivendo no momento, sai de forma espontânea, sem esforço algum da nossa parte. Os problemas, praticamente diários, com a obra da casa, têm sido ultrapassados, muitas vezes não a nosso gosto mas estamos numa fase em que nada nos entristece, porque o pensamento é sempre "depois mudamos". Já olhamos para a aldeia como "a nossa aldeia" onde, quase tudo, tem o seu encanto.
As minhas rotinas abraço-as como dádivas diárias: o caminho até ao comboio com o qual me deslumbro diariamente, tendo por companheiras de viagem as personagens dos livros, forçadas a esperar uma tarde de aulas para o nosso reencontro no final do dia, a Serra que me recebe* na penumbra com o seu encanto único de palácios e castelos por vezes emoldurados por neblina, outras vezes mergulhados em nuvens fantasmagóricas, a meio caminho do regresso a casa, Monserrate iluminado em todo o seu esplendor. Ao chegar a casa recebem-me as noites serenas impregnadas do cheiro das lareiras, o som do mar ao longe a embalar-nos. Por tudo isto e muito mais sinto vontade de cantar "Gracias a la vida" de Joan Baez.

Bisneto e bisavô

As minhas idas diárias a Lisboa têm um lado muito bom, os passeios de manhã com o meu paizoco, o meu herói, o sobrevivente muito além do imaginado, um dos homens, aos meus olhos, mais doce e terno. 

Tenho tido menos tempo para mim em casa, é uma realidade. No que se traduz esta falta de tempo? Em menos tempo para as agulhas, mas em compensação nunca li tanto, são 40 minutos de leitura para Lisboa e 40 minutos de leitura no regresso a casa. A verdade é que os livros foram o meu primeiro vício e com as agulhas a meterem-se no meio, os livros passaram a ocupar, praticamente, só a leitura de cabeceira. Estou contente com esta mudança, que será apenas temporária, pois conto para o ano conseguir colocação numa escola de Sintra.
Ainda assim, tenho tido tempo para terminar alguns trabalhos para o meu "peixinho", como chamo ternurentamente ao meu neto que irá nascer no início de Março. Ainda não foi hoje que arranjei tempo para falar dos meus trabalhos e agulhas, mas prometo que fica para breve. Para quem gosta de malha e leitura leve recomendo "Laços de Vida", um livro onde as amizades nascem numa Retrosaria, em volta de uma mesa onde se tecem gorros para bebés prematuros, algo que me fez lembrar o projecto da Filipa Carneiro. 
De momento leio "Uma Receita de Família"
Os livros que tenho lido são recomendações da Rachael, no podcast Sewrayme

* o telemóvel não capta o que os meus olhos vêem!

terça-feira

Sózinhos em casa! E agora?

Deixámos a nossa casa de há 20 anos, eu num misto de emoções, o Zé todo entusiasmado resultado do cansaço de viver num prédio. A verdade é que fui extremamente feliz numa casa situada numa pequena aldeia, dentro de Lisboa, "aldeia" em que nasci e cresci. Foi bom para todos especialmente para os meus filhos. Mas com a saída do meu filho mais novo, o último a sair, é que senti mesmo o "ninho vazio". Termos saído agora da cidade foi como um marco, o fechar de um capítulo, o virar da página, diria mesmo o iniciar do volume II de um romance. Romance que começa agora, num dia-a-dia a dois, numa casa preenchida com silêncios, muito mais tempo juntos nesta fase de teletrabalho, todos os serões apenas os dois, só nalguns finais do dia os filhos "entram" em nossa casa, ou melhor na casa em que estamos a viver só de passagem,  por vídeo chamada. 

O que nos tem ocupado quase todo o tempo são as obras e projectos da nova casa. Ainda assim tentamos implementar rotinas saudáveis, a começar por caminhadas pelo pinhal e arredores, ainda sem ter acertado num horário conveniente para os dois. Estamos indisciplinados mas não importa desde que vamos fazendo as coisas acontecer. Procuramos viver com o mínimo de stress em tempos tão difíceis como estes. 

Apanho o comboio para ir para a escola mas procuro não ficar apreensiva, pego num livro ou nas minhas agulhas e tento enganar o medo de levar o maldito virus para casa dos meus pais, para minha casa.
Noite sobre as águas
Noite sobre as águas de Ken Follett

Contínuo a ir à "minha aldeia" para estar com os meus pais e para dar as minhas aulas, ou melhor, "vender" as minhas aulas por uma pechincha apesar de ter mais de 30 anos de serviço.  Corta Sofia, apaga esses pensamentos negativos, esquece a tua carreira e vive, vive sem stress, sem arrependimentos! Se começar a pensar muito na minha carreira não há motivação que resista e os prejudicados serão apenas os meus alunos e a minha tranquilidade. 

Falar da minha carreira e das condições actuais de trabalho numa escola fez-me perder o fio à meada, terei de ficar por aqui.

A propósito de "meada", voltarei mas para partilhar o que tenho nas minhas agulhas.