A História Tradicional, que o Luís Correia nos contou...
A Moça Tecelã
Marina Colasanti
" Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, um longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos
do
algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens,
escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear
para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um
lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser
comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de
leite que entremeava o tapete. E à noite,
depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o
que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida,
começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu
emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.
Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando
bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na
maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para
aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o
homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque
tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele
poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de
tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que
ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente
ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e
portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A
neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A
noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.
Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes
acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta
à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os
cofres de moedas, as salas de criados. Tecer
era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela
primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o
marido dormia sonhando com novas exigências. E
descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha
nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário,
e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias,
os jardins. Depois desteceu os criados e o
palácio e todas as maravilhas que continha. E
novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando
a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não
teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o
desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito
aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a
moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do
horizonte."
Os contos da Ana Sofia, quer o cantado, quer o contado também foram muito bem escolhidos e contados, mas não os tenho para partilhar com vocês.
Obrigada Rosa Pomar, por esta "Hora do Tricot".